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O Erro do STJ: A Prevalência do CDC Sobre a Lei do Distrato e Seus Impactos no Mercado Imobiliário

O recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que decidiu pela prevalência do Código de Defesa do Consumidor (CDC) sobre a Lei do Distrato (Lei 6.766/1979) em contratos de compra e venda de imóveis, gerou grande repercussão no setor jurídico e imobiliário. Embora a decisão tenha sido majoritária, é necessário refletir sobre os argumentos dissidentes apresentados pelos ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro, que trouxeram perspectivas mais alinhadas à estabilidade do mercado e ao equilíbrio contratual. Lamentavelmente, os votos divergentes não prevaleceram – um erro que pode ter consequências danosas e desnecessárias para a segurança jurídica de um dos setores mais relevantes da economia brasileira.

Prevalência do CDC: uma aplicação discutível

O ponto central da controvérsia reside na escolha interpretativa da maioria, que privilegiou o CDC em detrimento da Lei do Distrato. No caso em questão, um comprador pediu judicialmente a resolução de um contrato de compra e venda de imóvel e exigiu a devolução de 90% dos valores pagos. A relatora, ministra Nancy Andrighi, considerou abusiva a aplicação dos descontos previstos no artigo 32-A da Lei do Distrato e estabeleceu um limite de retenção de 25%, conforme entendimento consolidado anteriormente pelo STJ.

A posição da maioria baseou-se no argumento de que o CDC é uma norma mais especial, aplicável às relações de consumo, enquanto a Lei do Distrato regula os contratos de incorporação de maneira mais ampla. Segundo esse raciocínio, a interpretação do CDC priorizaria a defesa do consumidor, evitando o chamado “enriquecimento sem causa” por parte do vendedor.

Embora essa lógica possa soar razoável sob o viés estritamente protetivo, a interpretação ignora aspectos práticos, comerciais e até mesmo objetivos previstos na Lei do Distrato. Essa escolha, ao privilegiar um entendimento protetor em excesso, acaba comprometendo a previsibilidade contratual e inviabilizando a aplicação de normas construídas explicitamente para lidar com o contexto específico da incorporação imobiliária, como bem argumentaram os ministros divergentes.

O voto divergente: equilíbrio e previsibilidade contratual

Entre os destaques do julgamento, o voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva trouxe uma perspectiva mais sensata e equilibrada. Ele argumentou que a Lei do Distrato deveria prevalecer sobre o CDC, justamente por ser a norma mais específica no âmbito dos contratos de compra e venda de imóveis no contexto da incorporação imobiliária. Ao contrário do que sustentou a maioria, Cueva destacou que tanto o CDC quanto a Lei do Distrato buscam proteger o consumidor e garantir segurança jurídica – mas ignorar a aplicação explícita da Lei do Distrato fere o princípio da previsibilidade e desorganiza o mercado.

Cueva também pontuou que as retenções previstas no artigo 32-A não são abusivas, enquanto respeitem os limites legais ali estabelecidos, como a cláusula penal de até 10% e a possibilidade de retenção de encargos como corretagem, tributos e outros custos administrativos. Ignorar esses dispositivos, segundo o ministro, é desconsiderar o equilíbrio proposto pelo legislador.

O ministro Moura Ribeiro apresentou outra alternativa interessante ao defender que apenas a cláusula penal deveria se submeter ao limite do artigo 53 do CDC, mantendo as demais retenções previstas na Lei do Distrato. Essa posição propôs uma solução intermediária, que reconhece a proteção ao consumidor sem comprometer completamente o direito das incorporadoras de reter quantias relacionadas às despesas diretas decorrentes do contrato.

Impactos no mercado imobiliário: quando a segurança jurídica é negligenciada

A decisão, ao flexibilizar os limites de retenção e impor a prevalência do CDC, desconsidera o impacto estrutural dessa posição para o mercado imobiliário. Incorporadoras e construtoras atuam em um cenário de altos riscos financeiros, muitas vezes dependendo das previsões contratuais de retenção para equilibrar prejuízos em casos de inadimplência ou desistência unilateral.

Ao limitar a retenção a 25% dos valores pagos, desconsiderando encargos adicionais como a corretagem e taxas administrativas, a decisão protege um lado da relação (o consumidor), mas cria um ambiente de insegurança jurídica que pode encarecer ainda mais os contratos futuros ou reduzir a oferta de imóveis devido à retração dos investidores no setor. Em última análise, essas soluções protetoras em excesso podem sair caro para o próprio consumidor, que terá menos opções ou enfrentará preços mais altos no longo prazo.

Além disso, a exclusão da chamada “taxa de fruição” na decisão da 3ª Turma é mais um exemplo de interpretação desconectada da realidade do mercado. Essa taxa, destinada a compensar o vendedor pelo uso do imóvel pelo comprador, é uma previsão justa prevista em lei. Ao rejeitar sua aplicação no caso analisado com base em uma análise da relatora, a decisão abre precedente para sua remoção em contratos futuros, enfraquecendo ainda mais a posição dos incorporadores.

Por que a Lei do Distrato deveria prevalecer

A Lei do Distrato foi criada com um objetivo claro: estabelecer parâmetros específicos para contratos no setor imobiliário. Ignorar essa norma em favor do CDC, sob o argumento de maior especialidade, é uma falha interpretativa que negligencia o fato de que o equilíbrio do mercado depende de regras claras e previsíveis.

O voto divergente apontou com precisão que o CDC e a Lei do Distrato não são conflitantes, mas complementares. Quando aplicadas em conjunto, essas normas garantem o equilíbrio que deveria ser o cerne das decisões judiciais. Ao optar unilateralmente pela prevalência do CDC, o STJ abre um precedente perigoso, esvaziando a segurança que a legislação especial buscava consolidar.

Embora o STJ tenha pretendido proteger o consumidor, o resultado final foi um desajuste no equilíbrio das relações contratuais no mercado imobiliário. A decisão negligenciou o impacto sistêmico para o setor e subestimou as implicações econômicas de desconsiderar normas que atendem especificamente às dinâmicas do mercado de incorporação.

Ao defender a prevalência do CDC, o tribunal não apenas ignorou os argumentos técnicos mais bem fundamentados dos votos divergentes, como também comprometeu a segurança jurídica de um setor essencial para a economia brasileira. Cabe ao mercado e aos operadores do direito buscarem formas de mitigar os prejuízos gerados por esse tipo de decisão e trabalharem para uma jurisprudência futura que seja, de fato, equilibrada e justa para ambas as partes.

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